Seu interesse pelo estudo sério da Teologia, sem os dogmas estabelecidos por qualquer sistema, pode ser visto parcialmente no link abaixo:
Exclusivamente, atendeu ao nosso blog e falou sobre a Reforma Protestante.
31 de outubro comemora-se a Reforma Protestante. Como é vista o movimento pela História?
Depende muito de que historiador, de que escola histórica, olha o fenômeno. Nietzsche, por exemplo, achava que o Cristianismo ia acabando e, para o desespero dele, Nietzsche, Lutero o revigorou. Seja como for, é impossível não perceber a influência da Reforma para a construção do Ocidente moderno.
Eu gostaria de apontar um fenômeno que me parece curioso. Se observada a “fronteira” estabelecida entre o sul da Europa, católico, e o norte, protestante, não posso deixar de observar o quanto isso “lembra” a fronteira do antigo império romano e os povos “bárbaros”. A romanização/cristianização desses povos talvez não se tenha dado de modo a apagar as distinções de cultura de longo prazo. Na primeira oportunidade real, o norte europeu desvencilha-se do sul e, até certo ponto, vemos o retorno do “mapa” europeu de séculos atrás...
Nesse sentido, não se pode separar a Reforma em pedaços: ela foi um fenômeno político-econômico, cultural (em sentido muito amplo), geográfico. Inclusive foi, também, um fenômeno religioso...
Em sentido político-econômico, trata-se da ruptura dos povos do norte do poder romano. Em sentido cultural, trata-se do retorno a tradições antigas, contextualizadas, todavia, na tradição cristã, que permanece como amálgama do continente, e trata-se sobretudo, da efervescência “moderna” dentro da religião, com todas as conseqüências disso – os eixos de ruptura (secularização) e os eixos de enclausuramento (as fundamentalizações). Do ponto de vista geográfico, trata-se da reconfiguração do limite romano: Europa do norte, protestante, Europa do sul, católica.
Penso, ainda, que é necessário relacionar a Reforma a outros fenômenos anteriores: as invasões árabes de séculos antes e a introdução de Aristóteles na Europa. O princípio de livre-exame das Escrituras, arrisco dizer, é um resultado direto da epistemologia aristotélica, que pressupõe, ao contrário da epistemologia platônica em voga na igreja, a atividade crítica do “homem” em face da “descoberta” da verdade – ainda que por mercê do “logos” que impregna tudo, atividade humana fundamental. Sem Aristóteles, não estou seguro de que fosse possível a emergência de um princípio anti-heterônomo tão forte.
Além disso, mas como deixar de ver também aí conseqüências daquelas mesmas invasões árabes, a Renascença e o desenvolvimento do Humanismo – onde Erasmo e Lutero se encontram, para, depois, separarem-se definitivamente.
A Reforma é, pois, um fenômeno complexo. Ela compõe-se de estruturas conservadoras e de estruturas emancipadoras. A história do protestantismo é mesmo a história dos desdobramentos desses princípios antagônicos – de que Tillich já falou em duas de suas obras fundamentais (História do Pensamento Cristão e Perspectivas da Teologia Protestantes nos Séculos XIX e XX). Por exemplo, no século XVIII, Teologia e Bíblia separam-se e passam a constituir disciplinas e abordagens cada vez mais irreconciliáveis, uma, reverberando, num processo de racionalização tradicional, as doutrinas, os dogmas e sua simplificações intra-eclesiásticas e para a “criação” e o “reino”. Outra, convertendo-se paulatinamente de Teologia Bíblica e Exegese em História da Religião de Israel.
Penso que a Reforma é o útero de onde saem essas duas facetas do mundo “moderno” – o mundo secularizado, profundamente protestante em sua dimensão autonomizante e o mundo “evangélico”, profundamente protestante em sua dimensão bíblico-cristológica.
Na análise do movimento, há diferença entre um historiador cristão e um não cristão?
Se ambos fizerem “história”, não necessariamente. Um historiador olhará para as forças e as contingências internas ao fluxo histórico, seja a longa ou a curta duração. O “cristão”, se como cristão ele operar, rasgará a contingência em determinações ontológico-metafísicas que “contaminarão” certamente seu olhar. De modo simples: um, o historiador, conceberá a Reforma como movimento interno à própria História, contingente, circunstancial, fruto de interconexões políticas, econômicas, culturais, religiosas, todas, ecossistêmicas. O outro verá a Reforma em face de concebidas ações divinas – seja encarando-a como um ato de rebeldia, seja encarando-a como um ato de obediência. São mundos epistemológicos irreconciliáveis.
Há benefícios da Reforma para a humanidade?
Não tenho dúvida. O fenômeno é ambíguo, de forma que há tanto benefícios quanto malefícios. Os benefícios que vejo são: a materialização de um espírito de emancipação, de autonomia – é, nesse sentido, um fenômeno moderno. Todavia, não sejamos ingênuos, estamos, com essa minha forma de pôr as coisas, acionando mais desdobramentos do fenômeno do que o próprio fenômeno, porque a Reforma jamais se entendeu assim – para os reformadores, estamos a nos pôr de joelhos diante de Deus, da Bíblia, da Verdade, de modo que, aos seus cálculos, tratava-se de submissão. Todavia, uma vez que a própria Igreja era o deuteragonista do confronto, toda a retórica se dá na forma de “emancipação” (“nós”, emancipando-nos “deles”). Mas não era, exatamente, “emancipação”, e tanto que, quando as emancipações de fato começam, a partir dos desdobramentos de secularização, a própria herança “reformada” (em sentido amplo) reage contrária a ela – a emancipação secular passa a ser interpretada como descristianização... Nesse sentido, lamento muito a morte de Bonhoeffer, que prometeu-nos, mas não pode cumprir a promessa, escrever-nos sobre o que ele pensava constituir-se “um cristianismo não-religioso para um homem em estado adulto”. A Reforma fará 500 anos daqui a 5 anos – e eu acho que ainda não sabemos o que é/seria esse seu talvez último desdobramento.
Mas há outros benefícios: a popularização da Bíblia e o incremento de alfabetização, além da infusão, na cultura, dos valores de “liberdade”, conquanto a retórica seja sempre ambígua.
A subjetivação, hoje, tão criticada, dados os desdobramentos das individualidades exacerbadas e a contínua perda de espírito de sociedade. Todavia, a subjetivação promoveu, a longo prazo, a emergência crítica de regimes retóricos de defesa dos negros, no longo e sangrento combate contra a escravidão, da mulher, a partir do século XIX e, hoje, das expressões de gênero homoafetivas, ainda em disputa na sociedade. Não é que a “emancipação” faça parte necessária da retórica cristã (mesmo a protestante) – muito pelo contrário: mas a Reforma despejou na sociedade a dinâmica da retórica de emancipação, por ela usada contra Roma, de modo que, a despeito de a escravidão, a misoginia e a homofobia serem, em última análise, elementos constitutivos da tradição cristã, também no Cristianismo – mercê da subjetivação posta em operação pela Reforma – a circulação de valores e de retóricas de subjetivação e emancipação puderam ser empregadas para a construção de leis e costumes adequados a esses princípios e à emancipação – ainda em curso – desses oprimidos sociais.
Contra-Reforma: qual a análise de um historiador?
Não posso falar como historiador. Sou teólogo, conquanto force-me para pensar sempre a partir das Ciências Humanas e das ciências de modo geral. A Contra-Reforma, todavia, pode ser compreendida como a reação compreensível e necessária de uma Instituição em face da fragmentação protestante. A “prova” de que uma reação era necessária é a própria realidade “protestante” – uma Babel de teologias, eclesiologias, doutrinas, dogmas, costumes – igrejas... Assim como Roma guarda o DNA de Nicéia/Constantinopla e a alma de Constantino/Teodósio – Unidade e Ordem –, Wittenberg guarda o DNA e a alma de Lutero e dos pais reformadores – a Fragmentação. São modelos tanto iguais – cada igreja protestante/evangélica é uma pequena Roma com sua pequena Contra-Reforma, ao mesmo tempo em que são tão diferentes, porque Roma faz de tudo pela Unidade, ao passo que Wittenberg esfacela-se ao primeiro bom dia mal pronunciado...
Na visão de um historiador crítico, os ideais da Reforma estão de pé?
Essa pergunta não pode ser respondia com um sim ou um não. É “sim e não”. E, mesmo assim, depende muito do que se considera ser a Reforma. No fundo, vários princípios da Reforma jamais foram postos em prática, e, todavia, nós os tratamos como se houvessem sido...
Um exemplo: nunca houve “livre-exame”, de fato, na Reforma. Trata-se de uma dissonância cognitiva. O “livre-exame” foi usado como arma contra Roma, mas, intramuros, todo protestante vê-se obrigado a circunscrever-se às doutrinas da igreja protestante a que está vinculado. Remonto, de novo, àqueles dois livros de Tillich, o final do primeiro e o início do segundo, que contam parte dessa história. Mesmo hoje, quando se quer “louvar” a Reforma, louva-se a máxima “só a graça, só a Escritura, só a fé”, traço “fossilizado” do confronto entre Lutero e a Igreja, sem nenhuma força prática para o desmonte do modus operandi ainda “católico-romano” dentro do protestantismo – a manutenção dos mesmos “dogmas” conciliares, trajados de “novidade evangélica”, e mantidos pelo mesmo regime “papal” – “denominacional”. Na prática, qual diferença?
Da mesma forma, a doutrina do sacerdócio universal do crente nunca foi de fato levada a sério e, a cada século, torna-se cada vez menos considerada. Há cada vez menos diferença entre o clericalismo sacramental de Roma e a prática e a retórica “pastorais” protestante/evangélica.
Outro elemento que poderia ser sacado como retórica ufanista é a Bíblia. Os protestantes sempre se “orgulharam” de sua “posse”. Mas seu estudo está sempre atrelado à política denominacional. Estudar a Bíblia, com seriedade, torna-se sinônimo de heresia. Depois do Vaticano II, que levou a Bíblia para mais perto da Tradição no mundo católico, não vejo nenhuma diferença substancial entre o modo como católicos e evangélico-protestantes lidam com a Bíblia – “usam-na” sempre um função de seus dogmas particulares e a partir da crença estabelecida desde as instâncias hierárquicas e normativas – lá e cá.
Todavia, eu ainda me assumiria como um protestante clássico, se com isso se aponta para o apelo incondicional à consciência, à autonomia, à subjetivação, à modernidade. Na prática, contudo, esses valor
es são, todos, muito dissimulados, e a sua atualização na vida é interpretada como “apostasia”. Isso porque a Reforma nunca pôs em prática de fato os princípios que defendeu – somente quando lutava contra Roma, sacou-os contra ela. Contra si mesma, a Reforma jamais os empregou até o fundo. E, no fundo, talvez a secularização seja, de fato, “o” desdobramento reformado – mas contra a Reforma...
Considerações finais.
Não haverá outra Reforma.
Essa me parece a maior contribuição da Reforma para o Cristianismo.
Lutero pode pretender reformar “uma” Igreja – a Cristã, que acolhia sob suas asas a Cristandade inteira. Era um homem contra uma Igreja.
Tomado pelo pathos divino, tomado daquele perigo espiritual que pode incorporar qualquer um, e interpretando esse pathos como a ação do Espírito de Cristo em sua consciência e alma, Lutero deu início ao processo de esfacelamento do tecido cristão. Hoje, o Cristianismo é um campo de pedras esfaceladas – absolutamente sem controle, cada pedra considerando-se ela mesma ação do controle divino. Não há como controlar mais o processo. Não há uma cabeça – trata-se de uma Hidra de milhões de cabeças, igrejas, denominações... Para o bem ou para o mal – Lutero deu início a um processo que seguirá o caminho das penas lançadas ao vento...
Ainda hoje, a Reforma na visão de um pastor presbiteriano. Aguarde!
Cabe a cada um decidir, optar e escolher o que assistir ou não com a orientação do Espírito Santo de Deus que em nós habita.
E a cada Pastor, apóstolo ou Bispo que se ocupa causando tumulto em busca de vaidade e audiência, convém que lessem a Bíblia e salvassem suas vidas profanas em Cristo Jesus.