Por que Martin Luther King? Nós e seu legado
5/4/2011 02:12:48
Por Raimundo BarretoMeu pensamento ético e teológico tem sido grandemente influenciado pela teologia e pela ética social de Martin Luther King Jr., e minha vida tem sido impactada pelo seu testemunho no que concerne a justiça e a paz. A primeira citação do Dr. King que eu já ouvi foi a seguinte: "Se uma pessoa não descobriu algo pelo qual ela pode morrer, essa pessoa não está preparada para viver"
Eu tinha 22 anos, e era o meu primeiro ano de seminário no Brasil. O ano era 1989 e eu estava prestes a participar como eleitor, pela primeira vez, de uma eleição presidencial no Brasil, após mais de duas décadas de ditadura militar. Os 21 anos de ditadura foram marcados por grande violação dos direitos humanos, tortura e "desaparecimentos". A maior parte das igrejas evangélicas brasileiras silenciou completamente sobre estas coisas. Faltavam ferramentas teológicas e coragem moral para lidar adequadamente com a situação. Muitos cristãos brasileiros, através de seu silêncio, acabaram contribuindo para a perpetuação desse pecado social e estrutural.
Saber que Martin Luther King Jr. foi um pastor batista, nesse contexto, se tornou algo inspirador e encorajador para aqueles entre nós que estavam determinados a sair da indiferença rumo a um compromisso com a justiça social.
Todo pensar é um pensar a partir de um lugar. No Brasil, o pensamento cristão está localizado num contexto marcado por uma escandalosa injustiça social. O Brasil é um dos maiores países do mundo. Sua economia nacional é uma das dez maiores economias do planeta. Sua riqueza, contudo, é muito desigualmente distribuída entre sua população de aproximadamente 190 milhões. O Brasil tem uma das piores distribuições de riqueza no mundo. Nem mesmo a pobreza no Brasil está distribuída uniformemente. Há um elemento racial na mesma e em suas consequências. Os afrodescendentes são a parte da população que mais sofre com a distorção na distribuição de renda no Brasil. No Brasil, como em outros lugares, existem muitos tipos de discriminação, com base, por exemplo no gênero, na classe social, ou na orientação sexual. Mas, pelo menos quando se trata de distribuição de renda, a discriminação racial supera até mesmo a discriminação baseada em gênero. O negro brasileiro, em média, ganha 30% menos do que a média das mulheres brancas, que já está na parte inferior da escala econômica no mercado. (IBGE, 2002). Assim, apesar dos mitos da democracia racial, o racismo continua a ser uma das formas mais intensas de discriminação no Brasil.
Um outro fator que reafirma a intensidade do preconceito racial no Brasil é a questão da violência. Os afro-brasileiros de ambos os sexos são as vítimas preferenciais de homicídios no Brasil. Uma pesquisa feita há alguns anos mostrou que o número de homicídios entre negros brasileiros é 87% superior ao de homicídios entre os brasileiros que se identificam como brancos. A maioria das vítimas de homicídio no Brasil é de homens negros entre 14 e 30 anos de idade.
Vivemos num país de grandes contrastes, onde fatores de fundo sócio-econômico se misturam a outros fatores para produzir grandes injustiças.
Apesar destes problemas, é inegável que o Brasil está experimentando um período de transição para uma possível democratização das suas estruturas políticas. Há um preço a ser pago por essa experiência democrática. Na verdade, ela tem custado a vida de muitas pessoas anônimas que nunca desistiram de sua luta por liberdade e justiça, seja no campo, sejam nas zonas urbanas. Nesse contexto, precisamos de exemplos que possam inspirar nossa luta, nos ajudando a manter viva a esperança de um futuro melhor para a nossa nação.
O tempo de transição que estamos vivendo exige uma profunda reflexão de todos aqueles interessados em construir um outro modelo de sociedade.Nesse contexto, as igrejas evangélicas de alguma forma também estão passando por mudanças. Ao menos algumas delas estão desejosas de desenvolver a sua própria ética social. Nesse contexto, há uma necessidade de diálogo com outras experiências referenciais e de se encontrar novos parceiros de conversação para esse processo.
Por que esse líder dos direitos civis e mártir norte-americano tem sido evocado por alguns brasileiros nesse processo? Por que deveríamos lembrar da vida, do pensamento desse pastor batista negro na outra América, 43 anos depois de seu assassinato?
Primeiramente, não devemos esquecer que ele foi um dos mais influentes líderes cristãos no século 20, e apesar disso seu pensamento teológico e sua ética social ainda são em grande parte desconhecidas das lideranças cristãs no Brasil. Por outro lado, sua visão da "Comunidade Amada” [beloved community] é suficientemente ampla para incluir a todos e todas, em todos os lugares — em particular, todos os povos oprimidos do mundo. De acordo com Benjamin Mays, o pensamento de King foi suprarracial, supranacional, supradenominacional e supracultural. Ele pertencia ao mundo e à humanidade como um todo. Quarenta e três anos após sua morte, sua política fundamentada no amor continua a ser um desafio para o mundo contemporâneo.
Apesar das diferenças de tempo e contexto histórico, existem elementos no pensamento de Martin Luther King, Jr. que ainda são relevantes para todos os cristãos que tentam fazer diferença no mundo de hoje. Sua mensagem, apesar de ter um significado particular para a tradição afro-americana, também pode inspirar as pessoas em outras partes do mundo.
Uma outra razão para lembrarmos desse pastor e teólogo negro norte-americano é o fato de que seu legado pertence, sobretudo, ao mundo dos pobres e deserdados. Não é à toa que minorias lutando contra toda sorte de opressão, em várias partes do mundo, têm se apoderado dessa herança nas suas próprias lutas. King se opôs com a mesma indignação às grandes manifestações do mal estrutural em sua época, que foram identificadas por ele no triplo eixo formado pelo racismo, pela pobreza e pelo militarismo. Ele mostrou como os afro-americanos, em particular, e os pobres em geral eram vítimas das forças empenhadas em incentivar e promover estes três males. Nos anos finais de sua vida, King destacou a interligação de toda a vida no planeta, relacionando a sua causa pelos direitos civis nos Estados Unidos com as lutas globais por justiça social e racial.
Durante esse período, ele mostrou alguma preocupação com a situação de pobreza e da fome no hemisfério sul. Num sermão intitulado A Time to Break Silence (1967) King criticou algumas políticas americanas para o sul. Ele disse que os Estados Unidos estavam do lado errado de uma revolução mundial. Ele viu as operações militares secretas americanas na Europa Central e na América do Sul como um "padrão de supressão", que emergia de um único interesse: "manter a estabilidade social para os investimentos [dos EUA]". Foi com a política externa norte-americana para a América Latina em mente que ele afirmou: "aqueles que tornam a revolução pacífica impossível tornam a revolução violenta inevitável".
Precisamos dialogar com esse líder e pensador cristão devido à urgência de sua agenda pública e a relevância do que ele chamou de "revolução de valores".
Para contrastar um padrão de comportamento que ao seu ver nos conduziria a uma auto-destruição, King propôs uma revolução moral. Para ele, a América e o Ocidente em geral precisam passar por uma revolução radical de valores. No cerne dessa revolução de valores está a mudança de uma “sociedade orientada para as coisas” para uma "sociedade orientada para as pessoas”. Ele acreditava que tal revolução moral levaria os americanos a questionar a justiça de muitas das políticas dos EUA direcionadas ao sul global, bem como geraria um olhar inquieto sobre o contraste gritante entre pobreza e riqueza. Ela iria levá-los a ver com indignação, por exemplo, o investimento de grandes somas de dinheiro pelos capitalistas do Ocidente em países do Terceiro Mundo só para ter lucro, sem qualquer preocupação com a melhoria social desses países. Essa revolução de valores também condenaria a aliança dos EUA com a "aristocracia rural da América Latina", como algo profundamente injusto.
Essa revolução conduziria a uma reorganização radical das prioridades. Em outras palavras, a revolução de valores significava para Martin Luther King uma mudança radical nas nossas lealdades. É necessário que nossas lealdades se tornem ecumênicas, ao invés de seccionais. À luz dessa visão de uma reorganização radical de valores, King lutou pela ideia de uma comunhão global que ergueria a preocupação com o próximo para além de nossa tribo, classe, raça e nação, na direção de um amor abrangente e incondicional para com todos os seres humanos.
Num sermão intitulado Where Do We Go from Here (1967) ele afirmou que toda a estrutura do sistema econômico atual precisa ser mudada. Ele desafiou seus contemporâneos a uma "insatisfação divina" contra o apartheid social, ou, em suas próprias palavras, contra "as trágicas paredes que separam ricos e pobres”, empurrando pessoas para viver em condições indecentes e insalubres. Para ele, a pobreza extrema não tem como ser justificada em nossa época. É socialmente tão cruel e cega como a prática de canibalismo na aurora da civilização, quando os seres humanos comiam uns aos outros, porque ainda não haviam aprendido a gerar comida a partir do solo ou consumir a vida animal em abundância em torno deles. Chegou a hora de “uma abolição total, direta e imediata da pobreza". Enfim, a única guerra que King apoiou foi uma guerra contra a pobreza.
"Estamos todos presos numa rede inescapável de mutualidade, atados em um único tecido do destino. O que afeta um diretamente, afeta a todos indiretamente."
Penso que entre as coisas que podemos aprender com o pensamento ético-social de Martin Luther King está exatamente essa necessidade de desenvolvermos uma perspectiva global. A despeito do papel cada vez mais protagonista que o Brasil tem desempenhado no cenário internacional nos últimos anos, tal visão da nossa responsabilidade global ainda não faz parte nem da preocupação da grande maioria de nossas lideranças políticas, nem muito menos de nossas lideranças religiosas. Criticamos a ignorância de muitos norte-americanos sobre o que se passa fora de sua nação, mas tanto quanto eles permanecemos centrados nos nossos próprios umbigos, desconectados de outras lutas e de outros sofrimentos, e ignorantes quanto a outras culturas e outras formas de ver o mundo. Mesmo o movimento ecumênico brasileiro tem sido descrito, com razão, como uma tribo ecumênica, o que reflete bem a carência de lealdades ecumênicas até mesmo naqueles entre os que se denominam ecumênicos. Precisamos ampliar nossos horizontes, e consequentemente nossas lealdades.
A questão da amplitude das lealdades, dessa visão humanista e ecumênica de King originava-se da sua concepção quanto a indivisibilidade da justiça. A justiça é indivisível, dizia King. Por isso, mesmo contra a conveniência do silêncio que beneficiaria seu próprio movimento, ele não podia se calar contra a injustiça, por exemplo, da Guerra do Vietnam. "A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em toda parte.” Ele mesmo se perguntava: Como alguém que passou a vida lutando pela dessegregação de espaços públicos poderia segregar sua moral, sua consciência?
Por sua vida e mensagem, Martin Luther King pode ser uma importante fonte teológica para o processo de globalização alternativa, de baixo para cima. Sua voz, como qualquer voz profética, às vezes falava sobre coisas que estavam à frente do seu tempo. Assim, enquanto algumas pessoas do seu próprio tempo não conseguiam entender a ênfase de King sobre a Comunidade Amada, uma comunhão ecumênica mundial de iguais, hoje, como se pode ver mais claramente a interligação do mundo, é mais fácil não só se conceber essa ideia, mas também ver a necessidade cada vez mais urgente de que o mundo se mova nessa direção.
King pode inspirar aqueles que trabalham pela paz e a justiça no mundo porque ele era um deles. Ele era um intelectual orgânico que sempre trabalhou nas bases, junto com o povo.
Por outro lado, King foi muito mais que um ativista cristão. Ele foi um líder intelectual, que usou conceitos teológicos sofisticados numa linguagem simples e compreensível à pessoa comum ao mesmo tempo em que oferecia visão teológica a um movimento social. Por exemplo, sua ênfase tríplice na justiça, no amor e na esperança contribuiu conjuntamente para fornecer ao movimento pelos direitos civis uma visão quanto ao fim que se queria construir. Esse tipo de visão ampla e transcendente ainda pode ser muito útil aos movimentos sociais contemporâneos, especialmente depois do desencantamento de uma era onde as grandes utopias desapareceram.
É verdade que justiça e igualdade já estão no cerne da maioria dos movimentos que lutam por justiça social hoje; o amor, porém, nem sempre está presente. Para King, o amor e a justiça são duas faces de uma mesma moeda. Um não pode existir sem o outro.
Da mesma forma, e sob a influência de Paul Tillich, King concebeu o poder como a capacidade de alcançar propósito, a força necessária para provocar uma mudança social, política e econômica. Mas o poder deve ser acompanhado pelo amor.
"O poder sem amor é temerário e abusivo."
"Amor sem poder é sentimental e anêmico."
"Poder, no seu melhor, é o amor implementando as exigências da justiça; e a justiça, no seu melhor, é o poder corrigindo tudo o que se impõe contra o amor."
Finalmente, a ênfase posta por King sobre a esperança se torna muito importante em momentos de desespero e falta de utopias. Sua esperança não se baseou apenas numa visão de futuro, numa utopia, mas na ideia de uma companhia sempre presente. Ele esperava o que parecia ser impossível, porque ele acreditava na moralidade final do universo, baseada na existência de um Deus moral e justo. Porque há uma justiça suprema no universo, aqueles que trabalham pela paz e pela justiça não estão sozinhos. Há uma "companhia cósmica" que conspira com eles para restaurar a justiça. Aqueles que lutam pela justiça serão vitoriosos, não importa o que aconteça ou quanto tempo demore.
Por todos esses insights ainda tão úteis, o pensamento ético de Martin Luther King, Jr. continua servindo como um importante recurso espiritual e moral para aqueles movimentos populares tentando remodelar a ordem mundial. MLK Jr. tornou-se uma inspiração para minorias e grupos sub-representados em diversos lugares, que têm aplicado os princípios do Movimento pelos Direitos Civis à sua própria condição, buscando a expansão da democracia e da justiça, na direção de uma maior participação na tomada de decisões políticas que afetam sua vida e seu destino. Como disse Vincent Harding, “King vive...nós o vimos enfrentando os tanques na praça de Tiananmen, dançando sobre o muro caído em Berlim, cantando em Praga, vivo nos olhos de Nelson Mandela...Ele vive dentro de nós, aqui mesmo...onde quer que suas batalhas não concluídas são retomadas por nossas mãos.”
King foi capaz de dar a interpretação teológica e ética para os problemas sociais predominantes nos seus dias, e fez isso de tal forma que atraiu um amplo espectro ecumênico de diferentes pessoas e movimentos ao redor do mundo. Ele foi um exemplo de como se pode fazer um discurso público sobre as percepções da fé cristã para a mudança social, sem que se transforme a nação numa igreja. Isso lhe permitiu ser persuasivo para judeus, católicos e até mesmo pessoas sem afiliação religiosa. A despeito de sua visão ontológica da justiça, King acreditava que uma injustiça idealizada e promovida por seres humanos pode ser vencida por seres humanos.
Não dá pra deixar de dizer que o pensamento e a vida de King inspiraram algumas figuras importantes da história recente do Brasil. Um deles foi Dom Helder Câmara. Pregando uma revolução não-violenta dos pobres, D. Helder recusou o rótulo de comunista, palavra que foi usada contra ele várias vezes, e afirmou que o revolucionário precisava mais de transcendência do que de determinismo. Para ele, a libertação era um ato de amor, um ato que não só libertava os oprimidos, mas também aqueles que estão presos pelo poder maléfico que os leva a explorar e violar seus irmãos e irmãs, criados à imagem de Deus.
Paulo Freire, o grande educador pernambucano, autor de Pedagogia do Oprimido, também citou King entre aqueles que impactaram sua vida. Ele falou sobre a esperança como uma necessidade ontológica com base na práxis. Segundo Freire, a possibilidade de libertação repousa sobre a ação dos oprimidos. Não é o opressor que atua como libertador, mas os próprios oprimidos. "É o oprimido que resgata o opressor, e não vice-versa." Sem alegar qualquer relação direta, ou fazer qualquer conjectura sobre quem a usou primeiro, penso apenas que vale a pena salientar o quanto essa ideia se parece com uma exposta por King. Ele disse que, ao se recusar a cooperar com uma estrutura injusta, os oprimidos não estavam apenas trabalhando pela sua própria libertação, mas também para a redenção de seus opressores.
Outra figura brasileira que se inspirou em King foi Benedita da Silva, mulher negra, pentecostal, proveniente das favelas no Rio de Janeiro, que se tornou a primeira mulher negra a ser eleita para o senado brasileiro. Independente de qualquer coisa, ninguém pode negar o significado simbólico da ascensão desta mulher negra na política brasileira, e a importância do papel exercido por ela nesse contexto. Para Benedita, qualquer cristão comprometido com o Reino de Deus tem que se opor a todas as formas de injustiça que negam o propósito de Deus para a humanidade. Algumas de suas preocupações são a desigualdade entre as raças, a desigualdade entre homens e mulheres, os abusos sofridos por crianças às mãos da sociedade. Em suas entrevistas, ela mencionou o Dr. King, Mandela e Jesse Jackson como importantes fontes de inspiração para sua jornada.
Hoje, tal influência tem sido mais disseminada, particularmente entre cristãos mais jovens, que se interessam em saber sobre a vida de Martin Luther King Jr. quando se deparam com informações sobre ele, seja na universidade ou em circulos mais populares. Não há dúvida de que King foi, como disse Ricardo Gondim, um dos profetas mais autênticos do século 20. Devemos apenas ter cuidado para não sermos tentados a domesticar sua memória na medida em que nos lembramos dele. Dialogar criticamente com King implica em assumir a continuidade de suas lutas, ampliando inclusive seus horizontes, em diálogo com as novas realidades com as quais nos deparamos.
Eu tinha 22 anos, e era o meu primeiro ano de seminário no Brasil. O ano era 1989 e eu estava prestes a participar como eleitor, pela primeira vez, de uma eleição presidencial no Brasil, após mais de duas décadas de ditadura militar. Os 21 anos de ditadura foram marcados por grande violação dos direitos humanos, tortura e "desaparecimentos". A maior parte das igrejas evangélicas brasileiras silenciou completamente sobre estas coisas. Faltavam ferramentas teológicas e coragem moral para lidar adequadamente com a situação. Muitos cristãos brasileiros, através de seu silêncio, acabaram contribuindo para a perpetuação desse pecado social e estrutural.
Saber que Martin Luther King Jr. foi um pastor batista, nesse contexto, se tornou algo inspirador e encorajador para aqueles entre nós que estavam determinados a sair da indiferença rumo a um compromisso com a justiça social.
Todo pensar é um pensar a partir de um lugar. No Brasil, o pensamento cristão está localizado num contexto marcado por uma escandalosa injustiça social. O Brasil é um dos maiores países do mundo. Sua economia nacional é uma das dez maiores economias do planeta. Sua riqueza, contudo, é muito desigualmente distribuída entre sua população de aproximadamente 190 milhões. O Brasil tem uma das piores distribuições de riqueza no mundo. Nem mesmo a pobreza no Brasil está distribuída uniformemente. Há um elemento racial na mesma e em suas consequências. Os afrodescendentes são a parte da população que mais sofre com a distorção na distribuição de renda no Brasil. No Brasil, como em outros lugares, existem muitos tipos de discriminação, com base, por exemplo no gênero, na classe social, ou na orientação sexual. Mas, pelo menos quando se trata de distribuição de renda, a discriminação racial supera até mesmo a discriminação baseada em gênero. O negro brasileiro, em média, ganha 30% menos do que a média das mulheres brancas, que já está na parte inferior da escala econômica no mercado. (IBGE, 2002). Assim, apesar dos mitos da democracia racial, o racismo continua a ser uma das formas mais intensas de discriminação no Brasil.
Um outro fator que reafirma a intensidade do preconceito racial no Brasil é a questão da violência. Os afro-brasileiros de ambos os sexos são as vítimas preferenciais de homicídios no Brasil. Uma pesquisa feita há alguns anos mostrou que o número de homicídios entre negros brasileiros é 87% superior ao de homicídios entre os brasileiros que se identificam como brancos. A maioria das vítimas de homicídio no Brasil é de homens negros entre 14 e 30 anos de idade.
Vivemos num país de grandes contrastes, onde fatores de fundo sócio-econômico se misturam a outros fatores para produzir grandes injustiças.
Apesar destes problemas, é inegável que o Brasil está experimentando um período de transição para uma possível democratização das suas estruturas políticas. Há um preço a ser pago por essa experiência democrática. Na verdade, ela tem custado a vida de muitas pessoas anônimas que nunca desistiram de sua luta por liberdade e justiça, seja no campo, sejam nas zonas urbanas. Nesse contexto, precisamos de exemplos que possam inspirar nossa luta, nos ajudando a manter viva a esperança de um futuro melhor para a nossa nação.
O tempo de transição que estamos vivendo exige uma profunda reflexão de todos aqueles interessados em construir um outro modelo de sociedade.Nesse contexto, as igrejas evangélicas de alguma forma também estão passando por mudanças. Ao menos algumas delas estão desejosas de desenvolver a sua própria ética social. Nesse contexto, há uma necessidade de diálogo com outras experiências referenciais e de se encontrar novos parceiros de conversação para esse processo.
Por que esse líder dos direitos civis e mártir norte-americano tem sido evocado por alguns brasileiros nesse processo? Por que deveríamos lembrar da vida, do pensamento desse pastor batista negro na outra América, 43 anos depois de seu assassinato?
Primeiramente, não devemos esquecer que ele foi um dos mais influentes líderes cristãos no século 20, e apesar disso seu pensamento teológico e sua ética social ainda são em grande parte desconhecidas das lideranças cristãs no Brasil. Por outro lado, sua visão da "Comunidade Amada” [beloved community] é suficientemente ampla para incluir a todos e todas, em todos os lugares — em particular, todos os povos oprimidos do mundo. De acordo com Benjamin Mays, o pensamento de King foi suprarracial, supranacional, supradenominacional e supracultural. Ele pertencia ao mundo e à humanidade como um todo. Quarenta e três anos após sua morte, sua política fundamentada no amor continua a ser um desafio para o mundo contemporâneo.
Apesar das diferenças de tempo e contexto histórico, existem elementos no pensamento de Martin Luther King, Jr. que ainda são relevantes para todos os cristãos que tentam fazer diferença no mundo de hoje. Sua mensagem, apesar de ter um significado particular para a tradição afro-americana, também pode inspirar as pessoas em outras partes do mundo.
Uma outra razão para lembrarmos desse pastor e teólogo negro norte-americano é o fato de que seu legado pertence, sobretudo, ao mundo dos pobres e deserdados. Não é à toa que minorias lutando contra toda sorte de opressão, em várias partes do mundo, têm se apoderado dessa herança nas suas próprias lutas. King se opôs com a mesma indignação às grandes manifestações do mal estrutural em sua época, que foram identificadas por ele no triplo eixo formado pelo racismo, pela pobreza e pelo militarismo. Ele mostrou como os afro-americanos, em particular, e os pobres em geral eram vítimas das forças empenhadas em incentivar e promover estes três males. Nos anos finais de sua vida, King destacou a interligação de toda a vida no planeta, relacionando a sua causa pelos direitos civis nos Estados Unidos com as lutas globais por justiça social e racial.
Durante esse período, ele mostrou alguma preocupação com a situação de pobreza e da fome no hemisfério sul. Num sermão intitulado A Time to Break Silence (1967) King criticou algumas políticas americanas para o sul. Ele disse que os Estados Unidos estavam do lado errado de uma revolução mundial. Ele viu as operações militares secretas americanas na Europa Central e na América do Sul como um "padrão de supressão", que emergia de um único interesse: "manter a estabilidade social para os investimentos [dos EUA]". Foi com a política externa norte-americana para a América Latina em mente que ele afirmou: "aqueles que tornam a revolução pacífica impossível tornam a revolução violenta inevitável".
Precisamos dialogar com esse líder e pensador cristão devido à urgência de sua agenda pública e a relevância do que ele chamou de "revolução de valores".
Para contrastar um padrão de comportamento que ao seu ver nos conduziria a uma auto-destruição, King propôs uma revolução moral. Para ele, a América e o Ocidente em geral precisam passar por uma revolução radical de valores. No cerne dessa revolução de valores está a mudança de uma “sociedade orientada para as coisas” para uma "sociedade orientada para as pessoas”. Ele acreditava que tal revolução moral levaria os americanos a questionar a justiça de muitas das políticas dos EUA direcionadas ao sul global, bem como geraria um olhar inquieto sobre o contraste gritante entre pobreza e riqueza. Ela iria levá-los a ver com indignação, por exemplo, o investimento de grandes somas de dinheiro pelos capitalistas do Ocidente em países do Terceiro Mundo só para ter lucro, sem qualquer preocupação com a melhoria social desses países. Essa revolução de valores também condenaria a aliança dos EUA com a "aristocracia rural da América Latina", como algo profundamente injusto.
Essa revolução conduziria a uma reorganização radical das prioridades. Em outras palavras, a revolução de valores significava para Martin Luther King uma mudança radical nas nossas lealdades. É necessário que nossas lealdades se tornem ecumênicas, ao invés de seccionais. À luz dessa visão de uma reorganização radical de valores, King lutou pela ideia de uma comunhão global que ergueria a preocupação com o próximo para além de nossa tribo, classe, raça e nação, na direção de um amor abrangente e incondicional para com todos os seres humanos.
Num sermão intitulado Where Do We Go from Here (1967) ele afirmou que toda a estrutura do sistema econômico atual precisa ser mudada. Ele desafiou seus contemporâneos a uma "insatisfação divina" contra o apartheid social, ou, em suas próprias palavras, contra "as trágicas paredes que separam ricos e pobres”, empurrando pessoas para viver em condições indecentes e insalubres. Para ele, a pobreza extrema não tem como ser justificada em nossa época. É socialmente tão cruel e cega como a prática de canibalismo na aurora da civilização, quando os seres humanos comiam uns aos outros, porque ainda não haviam aprendido a gerar comida a partir do solo ou consumir a vida animal em abundância em torno deles. Chegou a hora de “uma abolição total, direta e imediata da pobreza". Enfim, a única guerra que King apoiou foi uma guerra contra a pobreza.
"Estamos todos presos numa rede inescapável de mutualidade, atados em um único tecido do destino. O que afeta um diretamente, afeta a todos indiretamente."
Penso que entre as coisas que podemos aprender com o pensamento ético-social de Martin Luther King está exatamente essa necessidade de desenvolvermos uma perspectiva global. A despeito do papel cada vez mais protagonista que o Brasil tem desempenhado no cenário internacional nos últimos anos, tal visão da nossa responsabilidade global ainda não faz parte nem da preocupação da grande maioria de nossas lideranças políticas, nem muito menos de nossas lideranças religiosas. Criticamos a ignorância de muitos norte-americanos sobre o que se passa fora de sua nação, mas tanto quanto eles permanecemos centrados nos nossos próprios umbigos, desconectados de outras lutas e de outros sofrimentos, e ignorantes quanto a outras culturas e outras formas de ver o mundo. Mesmo o movimento ecumênico brasileiro tem sido descrito, com razão, como uma tribo ecumênica, o que reflete bem a carência de lealdades ecumênicas até mesmo naqueles entre os que se denominam ecumênicos. Precisamos ampliar nossos horizontes, e consequentemente nossas lealdades.
A questão da amplitude das lealdades, dessa visão humanista e ecumênica de King originava-se da sua concepção quanto a indivisibilidade da justiça. A justiça é indivisível, dizia King. Por isso, mesmo contra a conveniência do silêncio que beneficiaria seu próprio movimento, ele não podia se calar contra a injustiça, por exemplo, da Guerra do Vietnam. "A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em toda parte.” Ele mesmo se perguntava: Como alguém que passou a vida lutando pela dessegregação de espaços públicos poderia segregar sua moral, sua consciência?
Por sua vida e mensagem, Martin Luther King pode ser uma importante fonte teológica para o processo de globalização alternativa, de baixo para cima. Sua voz, como qualquer voz profética, às vezes falava sobre coisas que estavam à frente do seu tempo. Assim, enquanto algumas pessoas do seu próprio tempo não conseguiam entender a ênfase de King sobre a Comunidade Amada, uma comunhão ecumênica mundial de iguais, hoje, como se pode ver mais claramente a interligação do mundo, é mais fácil não só se conceber essa ideia, mas também ver a necessidade cada vez mais urgente de que o mundo se mova nessa direção.
King pode inspirar aqueles que trabalham pela paz e a justiça no mundo porque ele era um deles. Ele era um intelectual orgânico que sempre trabalhou nas bases, junto com o povo.
Por outro lado, King foi muito mais que um ativista cristão. Ele foi um líder intelectual, que usou conceitos teológicos sofisticados numa linguagem simples e compreensível à pessoa comum ao mesmo tempo em que oferecia visão teológica a um movimento social. Por exemplo, sua ênfase tríplice na justiça, no amor e na esperança contribuiu conjuntamente para fornecer ao movimento pelos direitos civis uma visão quanto ao fim que se queria construir. Esse tipo de visão ampla e transcendente ainda pode ser muito útil aos movimentos sociais contemporâneos, especialmente depois do desencantamento de uma era onde as grandes utopias desapareceram.
É verdade que justiça e igualdade já estão no cerne da maioria dos movimentos que lutam por justiça social hoje; o amor, porém, nem sempre está presente. Para King, o amor e a justiça são duas faces de uma mesma moeda. Um não pode existir sem o outro.
Da mesma forma, e sob a influência de Paul Tillich, King concebeu o poder como a capacidade de alcançar propósito, a força necessária para provocar uma mudança social, política e econômica. Mas o poder deve ser acompanhado pelo amor.
"O poder sem amor é temerário e abusivo."
"Amor sem poder é sentimental e anêmico."
"Poder, no seu melhor, é o amor implementando as exigências da justiça; e a justiça, no seu melhor, é o poder corrigindo tudo o que se impõe contra o amor."
Finalmente, a ênfase posta por King sobre a esperança se torna muito importante em momentos de desespero e falta de utopias. Sua esperança não se baseou apenas numa visão de futuro, numa utopia, mas na ideia de uma companhia sempre presente. Ele esperava o que parecia ser impossível, porque ele acreditava na moralidade final do universo, baseada na existência de um Deus moral e justo. Porque há uma justiça suprema no universo, aqueles que trabalham pela paz e pela justiça não estão sozinhos. Há uma "companhia cósmica" que conspira com eles para restaurar a justiça. Aqueles que lutam pela justiça serão vitoriosos, não importa o que aconteça ou quanto tempo demore.
Por todos esses insights ainda tão úteis, o pensamento ético de Martin Luther King, Jr. continua servindo como um importante recurso espiritual e moral para aqueles movimentos populares tentando remodelar a ordem mundial. MLK Jr. tornou-se uma inspiração para minorias e grupos sub-representados em diversos lugares, que têm aplicado os princípios do Movimento pelos Direitos Civis à sua própria condição, buscando a expansão da democracia e da justiça, na direção de uma maior participação na tomada de decisões políticas que afetam sua vida e seu destino. Como disse Vincent Harding, “King vive...nós o vimos enfrentando os tanques na praça de Tiananmen, dançando sobre o muro caído em Berlim, cantando em Praga, vivo nos olhos de Nelson Mandela...Ele vive dentro de nós, aqui mesmo...onde quer que suas batalhas não concluídas são retomadas por nossas mãos.”
King foi capaz de dar a interpretação teológica e ética para os problemas sociais predominantes nos seus dias, e fez isso de tal forma que atraiu um amplo espectro ecumênico de diferentes pessoas e movimentos ao redor do mundo. Ele foi um exemplo de como se pode fazer um discurso público sobre as percepções da fé cristã para a mudança social, sem que se transforme a nação numa igreja. Isso lhe permitiu ser persuasivo para judeus, católicos e até mesmo pessoas sem afiliação religiosa. A despeito de sua visão ontológica da justiça, King acreditava que uma injustiça idealizada e promovida por seres humanos pode ser vencida por seres humanos.
Não dá pra deixar de dizer que o pensamento e a vida de King inspiraram algumas figuras importantes da história recente do Brasil. Um deles foi Dom Helder Câmara. Pregando uma revolução não-violenta dos pobres, D. Helder recusou o rótulo de comunista, palavra que foi usada contra ele várias vezes, e afirmou que o revolucionário precisava mais de transcendência do que de determinismo. Para ele, a libertação era um ato de amor, um ato que não só libertava os oprimidos, mas também aqueles que estão presos pelo poder maléfico que os leva a explorar e violar seus irmãos e irmãs, criados à imagem de Deus.
Paulo Freire, o grande educador pernambucano, autor de Pedagogia do Oprimido, também citou King entre aqueles que impactaram sua vida. Ele falou sobre a esperança como uma necessidade ontológica com base na práxis. Segundo Freire, a possibilidade de libertação repousa sobre a ação dos oprimidos. Não é o opressor que atua como libertador, mas os próprios oprimidos. "É o oprimido que resgata o opressor, e não vice-versa." Sem alegar qualquer relação direta, ou fazer qualquer conjectura sobre quem a usou primeiro, penso apenas que vale a pena salientar o quanto essa ideia se parece com uma exposta por King. Ele disse que, ao se recusar a cooperar com uma estrutura injusta, os oprimidos não estavam apenas trabalhando pela sua própria libertação, mas também para a redenção de seus opressores.
Outra figura brasileira que se inspirou em King foi Benedita da Silva, mulher negra, pentecostal, proveniente das favelas no Rio de Janeiro, que se tornou a primeira mulher negra a ser eleita para o senado brasileiro. Independente de qualquer coisa, ninguém pode negar o significado simbólico da ascensão desta mulher negra na política brasileira, e a importância do papel exercido por ela nesse contexto. Para Benedita, qualquer cristão comprometido com o Reino de Deus tem que se opor a todas as formas de injustiça que negam o propósito de Deus para a humanidade. Algumas de suas preocupações são a desigualdade entre as raças, a desigualdade entre homens e mulheres, os abusos sofridos por crianças às mãos da sociedade. Em suas entrevistas, ela mencionou o Dr. King, Mandela e Jesse Jackson como importantes fontes de inspiração para sua jornada.
Hoje, tal influência tem sido mais disseminada, particularmente entre cristãos mais jovens, que se interessam em saber sobre a vida de Martin Luther King Jr. quando se deparam com informações sobre ele, seja na universidade ou em circulos mais populares. Não há dúvida de que King foi, como disse Ricardo Gondim, um dos profetas mais autênticos do século 20. Devemos apenas ter cuidado para não sermos tentados a domesticar sua memória na medida em que nos lembramos dele. Dialogar criticamente com King implica em assumir a continuidade de suas lutas, ampliando inclusive seus horizontes, em diálogo com as novas realidades com as quais nos deparamos.
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