Pode parecer loucura, mas estabeleci uma
relação entre Van Gogh, pintor holandês, e seu Augusto, barbeiro que viveu em
Cardoso Moreira. Conheci os dois: Van Gogh, nos livros, e seu Augusto, pelos
cabelos que arrancou de minha cabeça com aquela máquina velha e pelas suas
manobras numa velha bicicleta, sempre assobiando.
Van Gogh viveu 37 anos, seu Augusto mais do
dobro de sua idade. Aquele conheceu o chamado primeiro mundo: Paris, Holanda
(onde nasceu) e outros países vizinhos. Este, apenas o que nem mundo é
considerado: Baú, Valão do Cedro, Três Cacetes, Morro Grande. Lugares tipo
daquele onde o vento faz a curva. O pintor era filho de pastor calvinista e o
barbeiro conhecia alguns pastores por se orientar com eles. Van Gogh manteve
contatos com pessoas da mais alta expressão como o doutor Gauchet, médico que
lhe deu abrigo como num asilo. Seu Augusto conhecia gente humilde,
trabalhadores da roça, alguns doentes, que se aproveitavam de seu serviço em
domicílio para fazer a cabeça de todos os filhos, preferencialmente com máquina
zero até o coco para demorar a crescer e, assim, economizar. Van Gogh, certa
vez, num ato de auto-flagelamento, cortou a orelha e enviou a um amigo pintor
que brigara com ele. Seu Augusto teve uma das pernas amputadas em função de
problemas de saúde com a senilidade. Van Gogh morreu, suicidando-se. Seu
Augusto, de velhice.
Com o crescimento e experimentando
certa independência, deixei de cortar cabelo com seu Augusto. Coisas de
rapazinho, queria corte mais moderno. Mas continuamos nos encontrando, ora na
igreja, no comércio onde trabalhava e aqui e noutro lugar. Seu Augusto sempre
assobiando, sorrindo, beijando as crianças e dando um cascudinho de
brincadeira. Fui para o Seminário e, quando estava no meio do curso, fiquei
sabendo que seu Augusto estava bem doente. Numa de minhas idas à terra natal,
resolvi visitá-lo. Mas que dizer para um velho que me viu criança e estava com
uma das pernas amputadas, com possibilidades de amputar a outra, e não podia
mais manobrar sua bicicleta velha? Fui preocupado à sua humilde casa e, quando
me aproximei do portão, ouvi uma voz conhecida. Prestei atenção. Era do velho
Augusto. Fui chegando (no interior, não tem essa de campainha e nem portão com
trancas) e, ao perceber minha presença, o simpático barbeiro dá uma risada,
manda-me entrar e começa a cantar com mais vigor. Lá, estava o seu Augusto com
a mesma alegria de outrora. Minha preocupação dissipou-se e aprendi uma das
mais fortes lições de minha vida. Eu que fora ali para consolar, fui consolado.
Que fazia diferença na vida de Van
Gogh e Seu Augusto? É a mesma vista na vida de pessoas que enfrentam grandes
problemas com reações extremamente diferentes. Por que Van Gogh quis terminar a
vida aos 37 anos e seu Augusto, com seus 80, ainda cantava? Van Gogh era filho
de pastor, mas, provavelmente, não conhecia o pastor dos pastores. Seu Augusto
tinha experiência com Ele. Van Gogh conhecia, provavelmente, o salmo do bom
pastor, mas seu Augusto conhecia o bom pastor do salmo.
Muitos vivem neste mundo sem nenhuma preocupação
de estabelecer um relacionamento estreito com o Senhor. Na hora do temporal, a
solução que encontram é cortar a orelha, dar cabo à vida. Quem tem experiência
com Cristo é capaz de cantar ainda que tenha as pernas cortadas. Isso não é
gostar de sofrer. É saber sofrer. É saber que, na hora do sofrimento, Deus está
amparando. Por isso, o profeta Habacuque encerrou seu livro de maneira
diferente como iniciou, deixando a reclamação e assumindo a adoração: “Ainda
que a figueira não floresça, nem haja fruto nas vides; ainda que falhe o
produto da oliveira, e os campos não produzam mantimento; ainda que o rebanho
seja exterminado da malhada e nos currais não haja gado. Todavia, eu me
alegrarei no Senhor, exultarei no Deus da minha salvação”.
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