sábado, 4 de abril de 2020

A Polêmica da Ceia on Line

Pr. Samuel Mouta, pastor batista
CEIA DO SENHOR ON LINE, PODE?

Por Samuel Mouta*

Neste momento de pandemia, em que os cultos públicos das igrejas estão suspensos, para evitar aglomerações e proliferação da covid-19, as igrejas estão utilizando cada vez mais os recursos da internet, tanto para realização de cultos on line, lives, reuniões administrativas por teleconferência, pastoreio e aconselhamento por WhatsApp e telefone, recolhimento de dízimos e ofertas por transferência bancária etc.

Isso é muito bom e positivo, pois mostra que a essência vai além da forma, e que a igreja é mais do que a sua reunião dominical no templo. Particularmente, creio que isso será um impulso para a igreja alcançar o mundo pelas redes sociais.

Nesta linha de pensamento, e para se adequar às necessidades, alguns colegas pastores estão realizando com suas igrejas a Ceia do Senhor on line.

Não quero polemizar com esses colegas amados e tão ilustres, a quem tanto amo e respeito. Mas quero discordar nesse ponto, muito respeitosamente, por entender que excedem à essência, ao espírito e ao propósito da Ceia do Senhor.

1. A CEIA DO SENHOR NÃO É UM SACRAMENTO

Historicamente, os batistas entendem que a Ceia do Senhor é um memorial, e não um sacramento.

Outras denominações cristãs, tanto católica quanto protestantes, acreditam haver um elemento místico na “Santa Ceia” por causa da eucaristia (a presença de Cristo nos elementos da Ceia).

A Igreja Católica Apostólica Romana ensina a transubstanciação do corpo de Cristo nos elementos da Ceia, isto é, no momento em que o sacerdote consagra os elementos, o pão se transforma no próprio corpo de Cristo, e o vinho no próprio sangue de Cristo, literalmente.

Outras denominações protestantes, como luteranos, creem na consubstanciação, em que os elementos contém o próprio corpo e sangue de Cristo.

Outras denominações de linhas calvinistas e presbiterianas crêem na presença mística, de modo que não haveria transubstanciação e nem consubstanciação, mas a presença de Cristo estaria nos elementos da Ceia, de forma inexplicável, milagrosa.

As três correntes aqui apontam para uma presença de Cristo nos elementos, o que faz da Ceia um sacramento, capaz de abençoar o participante, conferindo graça.

Os batistas não creem assim. O pão é pão mesmo e o fruto da videira é fruto da videira mesmo, não se transformam ou contém o corpo de Cristo. Os batistas celebram a Ceia do Senhor como um memorial (“em memória de mim”) de modo que os elementos em si não contêm a presença mística de Cristo, e não são capazes de abençoar ou conferir graça. Somos abençoados pelo fato de participarmos da comunhão do corpo de Cristo, pela memória, pelo autoexame, pela celebração, pela anunciação da morte do Senhor até que Ele venha, mas NÃO pelos elementos em si.

Isso não diminui o sentido da Ceia do Senhor, nem a esvazia, e nem ainda desvaloriza. Apenas lhe dá o sentido correto de uma ordenança cristã.

É o mesmo sentido simbólico do batismo, que igualmente não é um sacramento para os batistas, mas uma obediência à ordenança de Cristo, que não salva e nem confere graça.

Se a ceia do Senhor é uma ordenança (e não um sacramento) e um memorial (que não confere graça) deve ser obedecida e observada pela igreja com alegria. Mas em caso de um impedimento de sua realização, não haverá um prejuízo espiritual para o crente, pois não há “perda de bênção” e nem desobediência à ordem de Cristo (pois o fator é alheio à sua vontade). É assim que argumentamos quanto ao batismo, e devemos ser coerentes com a Ceia do Senhor.

Por isso os batistas, historicamente, não têm o costume de levar a Ceia do Senhor em casa ou hospitais, para os enfermos, pois não há sentido místico de bênção ou perda de bênção por participar ou não da Ceia do Senhor.

2. O SENTIDO DA CEIA DO SENHOR É A COMUNHÃO DO CORPO DE CRISTO

A Ceia do Senhor, como uma ordenança memorial, celebra a comunhão do corpo de Cristo. Comunhão com o próprio Senhor, e comunhão entre os irmãos. É uma celebração da unidade, fraternidade e da confraternização que desfrutamos como corpo de Cristo.

A Ceia do Senhor celebra o altruísmo, o compartilhamento, a amizade, o perdão, a vivência comunitária. São os vários membros de um mesmo corpo que, unidos, formam o corpo. Um pé sozinho, ou o olho sozinho, não são o corpo, mas todos os membros unidos formam o corpo. É essa unidade e comunhão que a Ceia do Senhor destaca e celebra.

Se a igreja não pode estar reunida, não há que se falar em comunhão. Ainda que haja uma reunião on line, não há a reunião plena do corpo, apenas de partes do corpo. Mesmo que o pastor celebre e dirija pela internet, não há uma confraternização real, apenas virtual.

Há coisas que não se fazem à distância: não se dá um abraço à distância; não se beija à distância; não se tem plena comunhão à distância. Exatamente por isso, todos os irmãos estão tão ansiosos pelo retorno dos cultos, com saudade da comunhão com os irmãos, pois a comunhão virtual não alcança a plenitude da confraternização cristã.

Pode ser que, no futuro, a cultura mude a ponto de que a comunhão seja plena apenas pelos meios virtuais, mas isso não é realidade no nosso tempo, e a prova disso é a ansiedade de todos quanto ao retorno dos cultos públicos.

Não está em questão aqui o fato de ser no templo ou não. A questão não é essa, mas o fato de se reunir o corpo de Cristo, como um todo (e não em parte). Essa sempre foi a premissa da eclesiologia batista ao longo dos séculos.

3. HÁ UM TEXTO BÍBLICO QUE REGULA A CELEBRAÇÃO DA CEIA DO SENHOR

Como bons batistas, queremos saber o que a Bíblia ensina sobre esse assunto. Alguns amados irmãos, muito bem-intencionados, estão buscando essa fundamentação nos textos do Antigo Testamento que tratam da Páscoa. Contudo, são institutos diferentes, em alianças diferentes, com símbolos diferentes e propósitos diferentes. Com todo o respeito, estão cometendo um erro hermenêutico primário, ao confundir institutos da religião judaica com a religião cristã.

Outros colegas, igualmente queridos, usam o texto de Apocalipse 3.20 (entrarei em sua casa, cearei com ele e ele comigo) como uma justificativa para a celebração da Ceia do Senhor em casa, mas um simples e rápido esforço hermenêutico apontará que o texto não se refere à Ceia do Senhor.

Resta-nos os textos dos evangelhos sobre a instituição da Ceia, e o texto mais claro, de 1 Coríntios 11, em que o apóstolo Paulo corrige as práticas erradas da igreja de Corinto especificamente sobre esse tema.

Paulo reforça várias vezes que a Ceia do Senhor deve ser celebrada no ajuntamento da igreja:

v. 17 – porquanto VOS AJUNTAIS (συνέρχομαι)
v. 18 – quanto VOS AJUNTAIS COMO IGREJA (συνερχομενων υμων εν εκκλησια)
v. 20 – quando VOS AJUNTAIS NUM MESMO LUGAR (συνερχομενων ουν υμων επι το αυτο)

O apóstolo ressalta que a igreja local (como corpo de Cristo) deve estar reunida para a celebração da Ceia do Senhor, e que esse ajuntamento tem que ser num mesmo lugar.

Paulo faz clara diferença no v. 22 entre a refeição em casa e a celebração da Ceia do Senhor como igreja reunida. “Não tendes casa para comer?” era uma contraposição ao comer em comunhão na igreja reunida.

No v. 33, concluindo a exortação, o apóstolo Paulo orienta: “Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros.” Ele deixa muito claro que a celebração deve ser no ajuntamento, no compartilhamento mútuo e todos ao mesmo tempo. Não dá para fazer “uns aos outros” estando sozinho.

Como alguém que está sozinho em casa, diante da tela do celular, poderá ter comunhão com os irmãos? É uma enorme incoerência!

Contrapondo os conceitos casa versus ajuntamento, novamente, no verso 34 Paulo adverte: “Mas se alguém tiver fome, coma em casa, para que não vos ajunteis para condenação”.

CONCLUSÃO

Há coisas que são feitas com as melhores intenções, mas que abrem precedentes perigosíssimos, e que futuramente se tornam problemas.

Como explicar aos membros da igreja, após o fim da pandemia, que não devem celebrar a Ceia do Senhor de casa, acompanhando o culto on line? Será um enorme contrassenso.

O motivo alegado para a Ceia on line, a saber, o impedimento de aglomeração, era comum no seio da igreja primitiva, que sofria enorme perseguição e tinhas suas reuniões limitadas por muitos motivos, mas que mesmo assim observava a Ceia do Senhor em um ajuntamento solene de todo o corpo em um mesmo lugar.

E como explicar por que não celebrar batismos on line? Os defensores da Ceia on line diriam a fórmula batismal no vídeo e o indivíduo sozinho, em casa, mergulha na banheira?

Qual é a justificativa que damos por não batizar pessoas no leito de morte? Sempre respondemos que é porque o batismo não salva, e que onde não é possível obedecer, não há desobediência. O mesmo não se aplica à Ceia do Senhor neste momento?

Creio que é o tempo da igreja orar, clamar ao Senhor pelo fim da pandemia, pela volta dos ajuntamentos solenes, da confraternização e vivência comunitária plenas, e ESPERAR o momento de celebrarmos a comunhão do corpo de Cristo na Ceia do Senhor!

Que Deus nos abençoe, amém!

* Pastor Batista e Gerente Executivo de Missões da Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira.


10 comentários:

  1. Com todo o meu respeito eu discordo do posicionamento do amado pastor com relação à ceia do Senhor online. Justamente por não ser um sacramento é que podemos sem temor realizarmos online. Cada crente providenciando o pão e o suco de uva pode sim participar da Ceia e assim cumprir com a ordenança, pois ainda que não seja um sacramento é também importante nos esforçarmos por realizá-la. Se a adoração a Deus pode ser online por que não a Ceia? Batismo já é um pouco mais complicado, mas com jeitinho é também possível realizar online. rsrs Afinal já temos celulares à prova d'água.

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    1. E quando passar a pandemia continuarão celebrando em casa. Prudenvia!

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  2. Como Batista somos livres para opinar e cada Igreja seguir à orientação Pastoral, tendo como referência única à Bíblia e o contexto de sua Membresia.
    Entretanto creio ser uma posição intempestiva, considerando o momento que vivemos.
    Apesar de Nós não entendermos a Ceia como Sacramento e de um Memorial magnífico, vivenciado em nossos solenes Cultos Congregacionais.
    Diferente disso creio ser inadequado, tornando apenas um gesto de carinho e afago para Irmãos que estão impossibilitados de estarem presentes em nossos Templos.

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  3. Gostei muito do artigo muito exclarecedor. Deus o abençoe, sempre.

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  4. Conheço Pastor Samuel há pouco tempo, mas já o admiro muito por suas posturas e argumentações inteligentes.
    Concordo plenamente com seu posicionamento.

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  5. Bíblico e objetivo. Concordo com tudo que está posto no artigo!

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  6. Existem irmãos que, por desinformação, atribuem poder a ceia, que beira a supersticão,mas não consegue reconciliar -se com o irmão ofendido!

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  7. Penso que somos Pastores para abençoar todos aqueles que buscam a Jesus como Senhor e crêem que Ele é o filho do Deus vivo.

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  8. Completamente correto coerente e bíblico, parabéns Pastor Samuel pelo artigo.

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  9. Parabéns Pastor Samuel pelas suas palavras bem explicativas e embasada na Palavra de Deus.
    Se eu quisesse discordar do pastor, deveria citar alguns textos que fundamenta-se a minha discordância, como não tenho não irei citar os meus achismos.
    A mesma preocupação que tenho sendo pastor, o colega citou e em tom de pergunta e "após o fim da pandemia"
    Deus continue te abençoando e te dando sabedoria dentro da Palavra.
    Abraços

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